EMENTA: AÇÃO CIVIL PÚBLICA. CONTROLE INCIDENTAL DE CONSTITUCIONALIDADE. QUESTÃO PREJUDICIAL. POSSIBILIDADE.
- O Supremo Tribunal Federal tem reconhecido a legitimidade da utilização da ação civil pública como instrumento idôneo de fiscalização incidental de constitucionalidade, pela via difusa, de quaisquer leis ou atos do Poder Público, mesmo quando contestados em face da Constituição da República, desde que, nesse processo coletivo, a controvérsia constitucional, longe de identificar-se como objeto único da demanda, qualifique-se como simples questão prejudicial, indispensável à resolução do litígio principal. Precedentes. Doutrina.
VINCULAÇÃO DOS SUBSÍDIOS DOS AGENTES POLÍTICOS LOCAIS À REMUNERAÇÃO DOS SERVIDORES PÚBLICOS MUNICIPAIS. INADMISSIBILIDADE. EXPRESSA VEDAÇÃO CONSTITUCIONAL (CF, ART. 37, XIII).
- Revela-se inconstitucional a vinculação dos subsídios devidos aos agentes políticos locais (Prefeito, Vice-Prefeito e Vereadores) à remuneração estabelecida em favor dos servidores públicos municipais. Precedentes.
DECISÃO: Trata-se de recursos extraordinários interpostos pela Câmara Municipal de Matão (e outros) e por Adauto Aparecido Scardoelli (e outros) contra acórdão, que, confirmado, em sede de embargos de declaração (fls. 658/664), pelo E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, está assim ementado (fls. 621):
“Ação civil pública – Invalidação de decreto-legislativo que vinculou o salário de vereadores e prefeitos aos dos servidores municipais – Inconstitucionalidade – Possibilidade de aumento para a própria legislatura – Burla ao princípio da anterioridade.
......................................................
Ministério Público – Legitimidade ativa conferida pelo artigo 129 da Constituição Federal.” (grifei)
As partes ora recorrentes, ao deduzirem os presentes recursos extraordinários, sustentaram que o Tribunal “a quo” teria transgredido preceitos inscritos na Constituição da República.
O Ministério Público Federal, em parecer da lavra do ilustre Subprocurador-Geral da República, Dr. WAGNER DE CASTRO MATHIAS NETTO, opinou pelo improvimento dos apelos extremos em questão (fls. 839/840).
Entendo assistir plena razão à douta Procuradoria Geral da República, considerado o pedido que o Ministério Público local, em primeira instância, formulou na ação civil pública por ele ajuizada na comarca de Matão/SP e que possui o seguinte conteúdo (fls. 19):
“c) seja julgada integralmente procedente a ação, com a declaração de nulidade, desde a publicação, do Decreto Legislativo 09/96, de 03.09.96 e da Resolução nº 05, de 03.09.96, do Município de Matão, em razão do reconhecimento, ‘incidenter tantum’, da inconstitucionalidade destes atos. Conseqüentemente:
c1) seja fixada a remuneração do Prefeito, do Vice-Prefeito e dos vereadores (inclusive suplentes que vierem eventualmente a assumir o cargo) na forma, respectivamente, do decreto legislativo e resolução camarária anteriores (Decreto Legislativo 11/92, de 18.08.92 e Resolução 02/92, de 18.08.92), especificando-se, em moeda corrente, os valores que deverão ser observados para efeito do pagamento das remunerações;
c2) sejam condenados os requeridos, individualmente, ao ressarcimento dos cofres públicos do Município de Matão, de todas as diferenças recebidas a maior (inclusive ajudas de custo) em função da inconstitucionalidade reconhecida e do critério adotado, conforme apurado em regular liquidação de sentença, sem prejuízo do cômputo dos juros e da correção monetária;” (grifei)
Presente esse contexto, cabe examinar, preliminarmente, se se revela legítima a instauração, na espécie, de controle incidental de constitucionalidade de atos emanados do Poder Público, contestados em face da Constituição da República, mediante ajuizamento, pelo Ministério Público local, de ação civil pública, em cujo âmbito suscitou-se, como condição indispensável à resolução do litígio, questão prejudicial pertinente à validade jurídico-constitucional do Decreto Legislativo nº 09, de 03/09/96, e da Resolução nº 05, de 03/09/96, ambos do Município de Matão/SP.
O exame deste processo revela que a ação civil pública, no caso, foi utilizada de modo inteiramente adequado aos seus propósitos, sem que incidisse na restrição ditada pela jurisprudência desta Suprema Corte, no sentido de que não cabe, em referida ação coletiva, a formulação única de pedido de declaração de inconstitucionalidade de ato emanado do Poder Público.
É inquestionável que a utilização da ação civil pública como sucedâneo da ação direta de inconstitucionalidade, além de traduzir situação configuradora de abuso do poder de demandar, também caracterizará hipótese de usurpação da competência do Supremo Tribunal Federal.
Esse entendimento - que encontra apoio em autorizado magistério doutrinário (ARNOLDO WALD, “Usos e abusos da Ação Civil Pública - Análise de sua Patologia”, “in” Revista Forense, vol. 329/3-16; ARRUDA ALVIM, “Ação Civil Pública - Lei 7.347/85 - Reminiscências e Reflexões após dez anos de aplicação”, p. 152/162, vários autores, 1995, RT; HUGO NIGRO MAZZILLI, “A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo”, p. 115/116, item n. 7, 12ª ed., 2000, Saraiva; ALEXANDRE DE MORAES, “Direito Constitucional”, p. 565/567, item n. 9.1.4, 7ª ed., 2000, Atlas; GILMAR FERREIRA MENDES, “Direitos Fundamentais e Controle de Constitucionalidade”, p. 396/403, item 6.4.2, 2ª ed., 1999, Celso Bastos Editor: JOSÉ DOS SANTOS CARVALHO FILHO, “Ação Civil Pública”, p. 74/77, item n. 8, 2ª ed., 1999, Lumen Juris, v.g.) - reflete-se, por igual, na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que, no entanto, somente exclui a possibilidade do exercício da ação civil pública, quando, nela, o autor deduzir pretensão efetivamente destinada a viabilizar o controle abstrato de constitucionalidade de determinada lei ou ato normativo (RDA 206/267, Rel. Min. CARLOS VELLOSO - AI 189.601-AgR/GO, Rel. Min. MOREIRA ALVES).
Se, contudo, o ajuizamento da ação civil pública visar, não à apreciação da validade constitucional de lei em tese, mas objetivar o julgamento de uma específica e concreta relação jurídica, aí, então, tornar-se-á lícito promover, “incidenter tantum”, o controle difuso de constitucionalidade de qualquer ato emanado do Poder Público.
Incensurável, sob tal perspectiva, a lição de HUGO NIGRO MAZZILLI (“O Inquérito Civil”, p. 134, item n. 7, 2ª ed., 2000, Saraiva):
“Entretanto, nada impede que, por meio de ação civil pública da Lei n. 7.347/85, se faça, não o controle concentrado e abstrato de constitucionalidade das leis, mas, sim, seu controle difuso ou incidental.
(...) assim como ocorre nas ações populares e mandados de segurança, nada impede que a inconstitucionalidade de um ato normativo seja objetada em ações individuais ou coletivas (não em ações diretas de inconstitucionalidade, apenas), como causa de pedir (não o próprio pedido) dessas ações individuais ou dessas ações civis públicas ou coletivas.” (grifei)
É por essa razão que o magistério jurisprudencial dos Tribunais - inclusive o do Supremo Tribunal Federal (Rcl 554/MG, Rel. Min. MAURÍCIO CORRÊA - Rcl 611/PE, Rel. Min. SYDNEY SANCHES, v.g.) - tem reconhecido a legitimidade da utilização da ação civil pública como instrumento idôneo de fiscalização incidental de constitucionalidade, desde que, nesse processo coletivo, a controvérsia constitucional, longe de identificar-se como objeto único da demanda, qualifique-se como simples questão prejudicial, indispensável à resolução do litígio principal:
“AÇÃO CIVIL PÚBLICA. CONTROLE INCIDENTAL DE CONSTITUCIONALIDADE. QUESTÃO PREJUDICIAL. POSSIBILIDADE. INOCORRÊNCIA DE USURPAÇÃO DA COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. RECLAMAÇÃO IMPROCEDENTE.
- O Supremo Tribunal Federal tem reconhecido a legitimidade da utilização da ação civil pública como instrumento idôneo de fiscalização incidental de constitucionalidade, pela via difusa, de quaisquer leis ou atos do Poder Público, mesmo quando contestados em face da Constituição da República, desde que, nesse processo coletivo, a controvérsia constitucional, longe de identificar-se como objeto único da demanda, qualifique-se como simples questão prejudicial, indispensável à resolução do litígio principal. Precedentes. Doutrina.”
(Rcl 1.898/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO)
De outro lado, e superada essa questão prejudicial (eis que adequada a utilização, na espécie, da ação civil pública), impõe-se assinalar que não se revela acolhível a pretensão recursal ora em exame, no ponto em que as partes recorrentes sustentam, sem razão, a constitucionalidade da vinculação dos subsídios dos agentes políticos locais aos vencimentos dos servidores públicos municipais, pois o Supremo Tribunal Federal, ao pronunciar-se sobre tal matéria, já deixou assentado o entendimento de que, ressalvadas as exceções constitucionais, viola o art. 37, XIII, da Constituição da República qualquer regramento vinculativo que venha a ser estabelecido em tema de estipêndio funcional no âmbito do serviço público, não importando se no plano da União Federal, dos Estados-membros, do Distrito Federal ou dos Municípios (ADI 396/RS, Rel. p/ o acórdão Min. GILMAR MENDES - ADI 2.840/ES, Rel. Min. ELLEN GRACIE ADI 4.001/SC, Rel. Min. EROS GRAU - ADI 4.009/SC, Rel. Min. EROS GRAU, v.g.):
“(...) 2. Equiparação de vencimentos no âmbito do serviço público. Vedação prescrita no inciso XIII do artigo 37 da Carta Federal. Alteração superveniente do dispositivo constitucional que não implicou modificação essencial do seu conteúdo, mantido o princípio que obsta a referida vinculação. Proibição que atinge situações anteriores à Constituição de 1988 (artigo 17 do ADCT/88).
Ação conhecida em parte e, nesta parte, julgada procedente.”
(ADI 305/RN, Rel. Min. MAURÍCIO CORRÊA - grifei)
“(...) - A Lei Maior impôs tratamento jurídico diferenciado entre a classe dos servidores públicos em geral e o membro de Poder, o detentor de mandato eletivo, os Ministros de Estado e os Secretários Estaduais e Municipais. Estes agentes públicos, que se situam no topo da estrutura funcional de cada poder orgânico da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, são remunerados, exclusivamente, por subsídios, cuja fixação ou alteração é matéria reservada à lei específica, observada, em cada caso, a respectiva iniciativa (incisos X e XI do art. 37 da CF/88).
- O dispositivo legal impugnado, ao vincular a alteração dos subsídios do Governador, do Vice-Governador e dos Secretários de Estado às propostas de refixação dos vencimentos dos servidores públicos em geral ofendeu o inciso XIII do art. 37 e o inciso VIII do art. 49 da Constituição Federal de 1988. Sobremais, desconsiderou que todos os dispositivos constitucionais versantes do tema do reajuste estipendiário dos agentes públicos são manifestação do magno princípio da Separação de Poderes.
Ação direta de inconstitucionalidade procedente.”
(ADI 3.491/RS, Rel. Min. CARLOS BRITTO - grifei)
O exame da presente causa evidencia que o acórdão ora impugnado ajusta-se, integralmente, à diretriz jurisprudencial que o Supremo Tribunal Federal firmou na matéria em análise.
Sendo assim, e em face das razões expostas, conheço dos presentes recursos extraordinários, para negar-lhes provimento.
Fonte: Informativo 571 do Supremo de dezembro de 2009.
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